Trocas de mensagens e investigação do Ministério Público revelam que pode ter havido negligência no tratamento do craque, que morreu em 25 de novembro do ano passado, paralisando o país

Porto Velho, RO - “Não me abandonem, não me deixem sozinho”, ouviu Mariano Israelit, um dos amigos mais próximos de Diego Maradona, na última vez em que viu o grande astro do futebol argentino.

As palavras foram ditas em março de 2020, e depois disso as conversas entre os dois foram apenas por telefone e mais escassas. Não só pela pandemia, mas porque, segundo Israelit, “mudavam o número de celular dele o tempo todo”.


Em entrevista à CNN, o amigo de Maradona conta que ele e outro amigo tentavam dizer “subliminarmente” para o ex-jogador da percepção de que ele estaria sendo isolado pelo seu entorno. Mas também queriam evitar gerar problemas com as pessoas que, naquele momento, eram do círculo do ex-jogador.

“É tudo muito triste. Ainda não acredito que ele não esteja aqui. Para mim, ele não morreu. Soltaram a mão dele”, diz Israelit sobre a morte do astro, de quem era amigo desde 1982. “É tudo muito confuso, muito estranho. Precisam esclarecer como ele morreu”, pede.

Há um ano, logo após a notícia que comoveu a Argentina e amantes de futebol em todo o mundo, centenas de argentinos se reuniram diante do estádio do Argentinos Juniors, o primeiro clube onde ele jogou profissionalmente, para homenagear o eterno camisa 10 da seleção albiceleste.


No dia seguinte à sua morte, milhares de pessoas passaram pela Casa Rosada – que chegou a ser invadida, após tentativas policiais de impedir que mais gente entrasse na fila. Ali, o corpo de Maradona foi velado.

Entre lágrimas, cantos de torcidas, aplausos, flores e homenagens que iam de faixas a desenho no chão e a distribuição de panfletos propondo que o mar argentino fosse renomeado como Mar Adona, uma multidão fez questão de dar seu último adeus ao ídolo do futebol.


Mariano Israelit com Maradona / Reprodução/Instagram/Mariano Israelit

Negligência investigada

Mas se Maradona moveu massas que celebravam sua vida e atuação até depois de sua morte, segundo o Conselho Médico de 22 peritos que investigou as circunstâncias do seu falecimento para determinar se houve negligência médica, ele recebeu um atendimento “inadequado, temerário e indiferente”.

No começo do mês, sete pessoas passaram a ser processadas pela morte do ex-jogador: o neurocirurgião Leopoldo Luque, a psiquiatra Agustina Cosachov, o psicólogo Carlos Díaz, o chefe de enfermeiros Mariano Perroni, os enfermeiros Ricardo Almirón e Gisella Madrid, e Nancy Forlini, médica do plano de saúde de Maradona.

Nos processos, por “homicídio simples com dolo eventual” – ou seja, por supostamente saberem que suas ações poderiam resultar na morte do ex-jogador -, eles podem ser sentenciados a penas entre oito a 25 anos de prisão.

Maradona morreu por uma parada cardíaca. A autópsia determinou um “edema agudo de pulmão secundário a uma insuficiência cardíaca crónica reagudizada”.

Semanas antes, ele havia passado por uma operação para a retirada de um hematoma subdural (um coágulo sanguíneo entre o crânio e o cérebro), mas recebeu alta e passou para internação domiciliar em uma propriedade de um condomínio privado em Tigre, na Grande Buenos Aires, onde morreu.

Para o Conselho Médico que investigou o caso, o ex-jogador agonizou por 12 horas. Apesar de reconhecer que não é possível afirmar que ele não teria falecido se contasse com uma internação adequada, a equipe também diz que ele poderia ter mais chances de sobreviver se estivesse em uma clínica “recebendo atenção de acordo com as boas práticas médicas”.

Para o conselho, o neurocirurgião e a psiquiatra responsáveis por ele mantiveram “omissões prejudiciais”, e não modificaram o plano de tratamento do ex-jogador, o que representou um “abandono” da saúde do paciente. Luque nega negligência, enquanto o advogado da psiquiatra afirmou à CNN em Espanhol que “do ponto de vista médico, [ela] atuou com seu melhor critério”.

Israelit conta, por sua vez, que nas últimas vezes que tentou falar com Maradona, o ex-jogador “não estava bem. Estava muito deprimido, muito mal por uma operação do joelho que tinha feito e pela separação com a namorada”.

“Ele também quis reunir todos os seus filhos para o aniversário de 60 anos e não conseguiu. Foram muitas coisas”, diz, ressaltando que Maradona estava “rodeado de gente que não fazia bem para ele”.

Áudios e assinatura falsificada

O amigo de Maradona também lamenta o conteúdo de mensagens trocadas pelas pessoas do círculo que cuidava ex-jogador e que foram divulgados pela imprensa argentina.

A troca de mensagens entre o neurocirurgião e seus sócios e a psiquiatra do jogador evidencia que davam comprimidos para Maradona dormir. Além disso, ele tinha acesso a maconha e álcool, o que preocupava um membro da equipe médica.

As perícias, no entanto, não determinaram a presença de álcool ou substâncias ilícitas em seu organismo. Somente de antipsicóticos, anticonvulsivos e antidepressivos.

Há questionamentos sobre a ausência de remédios para tratamento cardíaco, devido a uma miocardiopatia dilatada severa que o acometia.


“Esses áudios me paralisaram, não posso acreditar” Mariano Israelit, um dos melhores amigos de Maradona, sobre a troca de mensagens da equipe que cuidava do craque

Cada nova descoberta sobre a morte do ídolo ganha manchetes e amplo espaço nos noticiários locais. Gradualmente, diversas mensagens trocadas pela equipe dele tanto no momento em que estavam tentando reanimá-lo como em dias anteriores à morte foram vazadas para a imprensa local, gerando indignação no país.

As conversas expõem Luque sendo advertido sobre inchaços no corpo de Diego; a limitação do acesso do médico clínico a Maradona para exame; a preocupação do psicólogo processado em “limpar” sua clínica para o caso de uma ordem de busca; do médico de “preparar” a história clínica de Maradona no caso de eventual morte do ídolo; e mensagens no estilo “o gordo [expressão que pode ser carinhosa na Argentina] vai acabar morrendo”.

“Esses áudios me paralisaram, não posso acreditar”, lamenta Israelit, ressaltando que via com suspeita o tratamento dado ao astro e que já comentava suas percepções de que o círculo de Maradona era “estranho” com a ex-esposa de Maradona, Claudia Villafañe, e as filhas dele, Dalma e Giannina.

Uma perícia de caligrafia da Suprema Corte de Justiça da província de Buenos Aires determinou, ainda, que uma assinatura de Maradona em um formulário de prestação de serviços de enfermeiros foi falsificada.

Segundo a imprensa local, um dos enfermeros acusados de “homicídio com dolo eventual” afirmou que entregou a planilha sem assinatura do paciente para seu chefe quando Maradona já tinha morrido.

Disputas com a família

Na última vez que Maradona foi visto em público, em seu aniversário de 60 anos, em outubro do ano passado, o astro do futebol estava visivelmente debilitado, sem conseguir caminhar direito no estádio do Gimnasia y Esgrima La Plata, do qual era técnico.

Matías Morla, que foi advogado do craque, disse à agência de noticias Xinhua que acredita em mala práxis da equipe médica que cuidava de Maradona.

Mas o próprio Morla está em pé de guerra com as filhas do ex-jogador, que o acusaram de fraude e apropriação da marca pessoal do pai. Em outubro, ele prestou depoimento como testemunha, a pedido delas.

Segundo a imprensa local, na declaração ele afirmou que se opunha ao traslado do craque para a casa em Tigre, após a operação no cérebro a que ele foi submetido.

“Quando me disseram que a família decidiu que ele fosse para a casa de Tigre, eu disse ´é uma loucura´. Tinha uma casa em La Plata, paga pelo clube. Com esse dinheiro, contratavam três médicos e o Diego estaria vivo. Além disso, Giannina disse que traria um médico e ainda estamos esperando ele chegar”, disse, segundo o Página 12.

As filhas, por sua vez, segundo o jornal argentino, acusam Morla de comandar a equipe médica.

Morla é hoje o titular dos direitos da marca de Maradona, enquanto os cinco filhos do ídolo esperam a resolução da justiça sobre a herança (desde a morte do dele, duas pessoas fizeram testes de DNA para saber se também eram filhas dele, mas os testes deram negativo).

“O dinheiro dele desapareceu. Ele tinha trabalhado muito desde 2005. Estive em Cuba com ele quando não tínhamos um peso, um centavo. Mas Diego se levantou, fez muito dinheiro, quando ele voltou do México, depois de dirigir o Sinaloa, disse que tinha mais de 100 milhões de dólares e hoje não tem dinheiro para seus herdeiros, que é a quem corresponde todo o dinheiro que ele fez, e o dinheiro não existe”, afirma Israelit.

Ele acrescenta, no entanto, que a questão dos bens é secundária e que é preciso que a justiça determine o que levou à morte do ex-jogador.